O JANTAR
Eu nunca entendi a mística por trás da roleta russa. Um cartucho num tambor de revólver. Uma chance em seis de morrer. Por que seres humanos colocariam suas vidas em risco assim? Só pela sensação de sair vivo? Pela adrenalina? Pela falta de controle?
Eu nunca entendi a mística por trás da roleta russa. Até conhecer o Vincent.
Meu nome é Ezequiel e, nesse exato momento, eu já apertei o gatilho e estou esperando para ver se todo o peso do meu corpo vai terminar estirado no chão da sala ou se vou sair leve e revigorado por aquela porta.
Enquanto isso, saboreio a sobremesa. A melhor mousse de chocolate que já comi na vida.
Quando algo é muito bom assim, os americanos usam a expressão “to die for”. Acho que o Vincent levou isso ao pé da letra.
Desculpa, você não deve estar entendendo nada. Deixa eu voltar um pouco para explicar.
Existem algumas versões do começo dessa história. Eu vou contar a que gosto mais e que me parece ser a mais real. Numa próxima vez, se eu ainda tiver vivo, eu conto as outras.
Vincent era um estudante promissor de gastronomia em uma universidade no leste europeu. Chamava atenção por conseguir dar sabores inesquecíveis a comidas totalmente sem graça. Um dos homens mais poderosos e ricos do mundo, conhecido pelo apelido de King, o contratou para ser seu cozinheiro pessoal e chamou vários outros cozinheiros mundialmente famosos para dar dicas e ensinar tudo o que sabiam para aprimorar ainda mais as técnicas de Vincent. Com o passar dos anos, ele foi ficando tão bom, tão bom, que King não conseguia parar de comer. Ele chegou a pesar quase 500kg antes de ter um ataque fulminante e morrer com uma colher suja ainda na mão esquerda. Eu sei, parece mentira essa história. Mas eu adoro ela e escolhi acreditar.
Em seu testamento, King deixou uma mansão com uma cozinha gigantesca para Vincent, uma quantidade de dinheiro suficiente para mais duas gerações e uma carta, onde dizia que ele nunca deveria cobrar por sua comida, que seu valor era inestimável e que saborear cada prato feito por ele tinha sido a maior alegria de sua vida. Ele foi enfático e escreveu com todas as letras: “Se você fizesse um prato e colocasse veneno nele, eu comeria e morreria o homem mais feliz do mundo.”.
Ao ler isso, Vincent chorou e sorriu, com cara de louco. Uma expressão que combinaria perfeitamente com a ideia que veio à sua cabeça naquele momento.
Foi assim que surgiu “O Jantar”.
O Jantar é um menu degustação que acontece uma vez por mês e faz uma viagem gastronômica passando por todos os talentos de Vincent. É uma experiência inexplicável. Posso dizer que foi a melhor coisa que eu já senti, e olha que eu ainda estou terminando a sobremesa. Cada prato é uma explosão de alegria, de esperança, de poder... Não sei, não dá pra colocar em palavras. Eu só sei que nunca me senti tão vivo. E espero que isso continue assim.
Todo mês, 7 pessoas do mundo inteiro são convidadas para O Jantar (dizem que a fila de espera já ultrapassa duas décadas). Um dos pratos de um dos convidados contém um veneno letal que faz efeito em 3 horas. Os pratos são servidos em uma mesa enorme e os convidados escolhem seus pratos. Ninguém os serve. Seus destinos estão em seus próprios talheres. É uma roleta russa gastronômica. Um de nós aqui na mesa já está morto e não sabe. Mas mesmo assim, ninguém está com cara de preocupado, triste, sério... Estão todos radiantes, felizes, leves. Eu sei que nunca senti algo tão gostoso. Todos ao meu lado estão com a sensação de que valeu a pena ter vivido só por esse jantar. Todos concordando que foi a melhor experiência de suas vidas. Todos prontos para morrer por esse momento. Eu inclusive. Posso dizer com toda a confiança do mundo: valeu a pena. Que jantar. Que cozinheiro. Que loucura. Ah, Vincent, seu talento realmente é de morrer. O King estava certo.
Eu fiquei sabendo do Jantar por um amigo que foi na 23ª edição. Ele que me convenceu a ir. Muito obrigado, Zeca. Você tinha razão sobre cada detalhe que me contou.
Todos acabamos a sobremesa e Vincent nos convida para tomar um café na sala. Dizem que é nesse momento que o veneno faz efeito. Por incrível que pareça, eu nem estava pensando nisso essa hora. Estava bebendo o café e pensando: “Até o café desse desgraçado é surreal. É o melhor café do mundo. Como ele consegue?”.
A conversa foi evoluindo, começamos a entrar em assuntos mais pessoais, nos conhecendo um pouco. Eu já começo a pensar: “O Mauro parece ser um cara muito legal, não quero que seja ele.”, “Essa Paula é uma mulher muito inteligente, interessante, bonita... Queria ficar mais íntimo dela... Será que vou ter essa possibilidade?”, “Que droga, você não pode se apegar a essas pessoas, Ezequiel!”.
O tempo vai passando e qualquer movimento mais brusco, ou uma tosse mais carregada, eu já esperava o pior. E o tempo vai passando. Passando. E nada. Eu acho que era o único ali que começava a se preocupar com isso. Todos estavam gargalhando e se divertindo como nunca. Até o Vincent que ficou calado o Jantar todo, estava alegre e participando das conversas. Ah sim, eu esqueci de falar. Como bom anfitrião, o Vincent participa de todos os jantares e come junto com os convidados. Alguns dizem que ele sabe onde está o veneno e nunca pega aquele prato. Outros dizem que ele é louco e que está correndo o mesmo risco. Só saberemos a resposta o dia que ele cair duro e morrer. Espero muito que não seja hoje. Na verdade, espero que não seja nunca. O mundo merece comer sua comida pra sempre.
Enquanto olho pro Vincent, torcendo para ele viver eternamente para eu conseguir voltar daqui a 20 anos, ouço um barulho enorme de algo caindo. Viro a cabeça e vejo um corpo estirado no chão.
Senhor Felipe Lacerda Pinto. Ele fazia questão de dizer nome e sobrenome todas as vezes. Um cara irritante, pedante, mal educado. 48 anos, advogado, herdeiro dos escritórios de advocacia da família Lacerda Pinto. Vou confessar que me deu um certo alívio. Não ia com a cara dele. Dizem que a família Lacerda Pinto estava por trás das corrupções mais escandalosas do governo e nunca eram acusados de nada, que recebiam propinas para subornar juízes e lavavam dinheiro de bandidos. Depois que seu pai faleceu, o Senhor Felipe assumiu os negócios e continuou o esquema sujo. Ele era aquele tipo de pessoa que todos queriam pegar, mas não sabiam como porque tudo que ele fazia de errado, ele fazia muito certo.
Eu olho para todos na sala. Era uma mistura de sentimentos: aliviados por não estarem ali no chão mas ao mesmo tempo tristes e de luto pela morte que acabara de acontecer. Todos, menos Vincent. Ele estava sorrindo, feliz. Feliz como não esteve o jantar inteiro. Ele estava mais pro canto, então ninguém reparou. Mas eu vi claramente. Parecia que ele estava satisfeito. Com aquele semblante de missão cumprida.
Foi aí que caiu a ficha. Nunca foi o destino. Nunca foi uma roleta. Nunca foi sorte ou azar. O Vincent sabia quem deveria morrer. Ele escolheu quem ia morrer. Mas é claro. É tão óbvio. Ele acabou ficando amigo íntimo do King, então ele sabia quem eram as piores pessoas do mundo. Ele sabia quem merecia morrer. Ele está usando a comida para eliminar as pessoas que estão fazendo mal para o mundo. Ele é um gênio. A polícia não pode prendê-lo porque o Jantar é secreto e todos vão até lá por vontade própria. Os parentes e amigos não vão atrás porque foram avisados dos riscos. É o plano perfeito. Vincent, você é brilhante.
Enquanto nos despedimos, Vincent cumprimenta um a um. Quando chega minha vez, olho bem no olho dele com um olhar de que eu tinha entendido tudo. Ele sorri, também compreendendo o que meu olhar dizia. Ele coloca a mão no meu ombro e pergunta:
- Satisfeito?
Eu sorrio e respondo:
- Muito. Muito satisfeito.